terça-feira, 27 de agosto de 2013

Um presente

A Betty Salum foi minha aluna, e virou minha amiga, porque eu tinha muito mais a aprender com ela do que ela comigo. Sobre tudo – e sobretudo, sobre as palavras. Porque ela, Betty, sabe de todas as palavras o cerne. E ela me escreveu estas, que eu li chorando na segunda-feira depois dos espetáculos do Sesc Anchieta: 

Depois do seu show e de quase um ano sem ouvir música cantada (coisa que só tenho revelado a alguns velhos amigos e parentes que, como eu, só vêm ouvindo música instrumental), peguei a caixa de cds da Elis e tou ouvindo os da década de 1970.

Isso porque ontem você me fez lembrar dela no palco.

Certamente, não era a Elis na coreografia. Em "Falso Brilhante", no teatro Paramount, em 1975, ela não teria feito rodar a barra do vestido: ela se teria feito rodar junto com o vestido ao gemido do tango. No recital no Tuca, em 1974, ela teria cantado "São Mateus" sentada no banquinho, curvada sobre si mesma.

Efetivamente não era a Elis na leitura dos poemas. Isso sempre foi prerrogativa da Bethânia. Que, aliás, não lia Brecht, mas Fernando Pessoa.

Era uma pré-elis no corte de cabelo. Curtinho (mas ainda não curtíssimo), que a Twiggy, nos anos 1960, fez que a gente, sem pinta de Brigitte Bardot, adotasse. Sem falar nos cílios postiços (e os pintados na pálpebra inferior com rímel).

Era uma pós-elis na técnica vocal. Vez ou outra, por causa da emoção, faltou afinação e fôlego perfeitos, mas você continuou sorrindo. Diferentemente do que vi a Elis fazer mais de uma vez no "Fino da Bossa", quando chorava, afetando emoção, quando perdia a voz. Depois que se começou a falar em técnica vocal, tornou-se divina e, em 1982, morreu sem dar a chance de a gente reumanizá-la.

Obrigada pelo convite que você deixou pra Ruth, amiga desde o final dos anos 1970, quando fizemos graduação no curso de Francês da FFLCH. Ela, você sabe, não rejeita um convite pra show seu por causa da música que você e os músicos que te acompanham fazem.

Obrigada pelo convite que você deixou pro Sérsi, amigo do final dos anos 1980, quando trabalhamos no Senac, ali em frente ao Anchieta. Ele adorou tudo, menos a música da Brigitte Bardot porque "quem disse que ela tá ficando triste e sozinha?".

Obrigada pelo convite que você deixou pro Silas, amigo do começo dos anos 2010, que trabalhou comigo no Centro de Línguas. Ele "curtiu muito seu show" nos momentos em que não tava angustiado com as aulas que tinha de preparar pros alunos dele de espanhol.

Obrigada pelo convite que você deixou pra mim, amiga da segunda metade dos anos 1990, que obedeceu à professora e cantou uma música em inglês (escolhi "Sophisticated Lady" e adorei, lembra?). Eu achei tudo bonito. Especialmente o "São Mateus". Porque tiraram a vida do Miro. Porque o Gil tá pra rodar. Porque essa prosa não para aqui.

Emoção semelhante à que sinto quando ouço a Elis cantar. Talvez porque a bela música que se produziu nos anos 1970 nem sempre deixava a gente perceber que tavam tirando a vida de outros miros e que outros gis tavam pra rodar. E que aquela prosa não pararia ali.

Beijo, Betty

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