segunda-feira, 6 de maio de 2013

Eu e Stela

Em 2003 o telefone tocou, era o Ney Mesquita: eu e o Lincoln precisamos de você pra ser a entrevistadora da Stela do Patrocínio, que a gente está montando um espetáculo com os poemas musicados, topa? Eu nem pensei, segurei o grito: topo, claro, mas vou cantar o quê? perguntei. Nada, cê vai falar.

(Meses antes eu tinha ido à audição do cd Quintal, no Cachoeira, e chorei ridícula, absolutamente estarrecida com a canção "Stela do Patrocínio", e com todas as outras. Virou disco de cabeceira, canção inquieta, inflexão precisa, pausa e desconforto, esses dois meninos me ensinaram tanto que eles nem sabem.)

Era eu voltando a ser atriz, depois de tanto tempo. Sorri por dentro, envergonhada.

Uns ensaios, eu não conseguia decorar o texto, escrevi numas fichinhas de cartolina pautada, como uma estagiária. Eram só algumas canções ainda, e fizemos uma apresentação no Cacilda (nas noites musicais da Cia do Latão), outra noutro lugar, eu estava tão grávida, não lembro onde. Depois a Luiza nasceu, e nos primeiros meses de 2004 o Ney me ligou de novo: não fiz a boneca que você me pediu que eu não estou com cabeça pra boneca... mas fiz um casaquinho vermelho pra Luiza, tá? Ó, o espetáculo está pronto, vamos estrear na Funarte, no final do mês de julho.

E foi. A Georgette estava lá também, veio pra dirigir, mas não era preciso dirigir o Ney, bastava olhar pra ele, e só. Eram 15 canções, o Ney lindo, gigante, camisola de linho, a cara preta borrada de guache branco, o piano absoluto e os olhos pequenos do Lincoln, e eu, parte daquilo - a parte menor e mais desimportante, e por isso mesmo, era eu tão encharcada de felicidade. Duas apresentações, dias 30 e 31 de julho de 2004, tínhamos um espetáculo: Entrevista com Stela do Patrocínio.

O Ney morreu nove dias depois da estréia e na véspera do meu aniversário, no ano mais agudo da minha vida. Eu não sabia que tinha tanta água pra derramar. Eu não conhecia aquele silêncio.

O Lincoln foi valente, não abandonou o Ney, o barco, a beleza toda, vingou: a Georgette assumiu Stela - só ela tem boca e envergadura para a palavra de Stela, só na garganta dela cabem estas canções, esta história, este espetáculo. Junto veio a Julia Zakia, retina, copo d'água e varanda pra dançar conosco. Fomos então vestidos pela Silvana Marcondes, mãos pequenas bordando palavras, cianinhas, botões, rendas. Eu ganhei de presente a primeira canção. Nós chamamos Núcleo do Cientista.

Depois de 9 anos, ainda me surpreendo. A palavra cortante e certeira que tirou meu sono, minha certeza, meu norte, ainda continua a me emocionar tanto. Eu, que sou afeita ao mínimo, ainda aprendo, humílima, a virtude do cantar e da canção mais desprovido de excesso e vaidade.

Do Ney eu herdei o casaquinho de tricô feito num capricho de vovó, espargido de lavanda johnsons pra disfarçar o cheiro do cigarro; herdei as quintas feiras do Ó do Borogodó; e herdei Stela.

Eu sou uma pessoa de sorte.

Um comentário:

  1. Lindo Juliana, Lindo. Li seu texto não como quem lê do lado de cá, mas como quem lê dentro dele. Com amor, Consuelo de Paula

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