Em 2003 o telefone tocou, era o Ney Mesquita: eu e o Lincoln precisamos de você pra ser a entrevistadora da Stela do Patrocínio, que a gente está montando um espetáculo com os poemas musicados, topa? Eu nem pensei, segurei o grito: topo, claro, mas vou cantar o quê? perguntei. Nada, cê vai falar.
(Meses antes eu tinha ido à audição do cd Quintal, no Cachoeira, e chorei ridícula, absolutamente estarrecida com a canção "Stela do Patrocínio", e com todas as outras. Virou disco de cabeceira, canção inquieta, inflexão precisa, pausa e desconforto, esses dois meninos me ensinaram tanto que eles nem sabem.)
Era eu voltando a ser atriz, depois de tanto tempo. Sorri por dentro, envergonhada.
Uns ensaios, eu não conseguia decorar o texto, escrevi numas fichinhas de cartolina pautada, como uma estagiária. Eram só algumas canções ainda, e fizemos uma apresentação no Cacilda (nas noites musicais da Cia do Latão), outra noutro lugar, eu estava tão grávida, não lembro onde. Depois a Luiza nasceu, e nos primeiros meses de 2004 o Ney me ligou de novo: não fiz a boneca que você me pediu que eu não estou com cabeça pra boneca... mas fiz um casaquinho vermelho pra Luiza, tá? Ó, o espetáculo está pronto, vamos estrear na Funarte, no final do mês de julho.
E foi. A Georgette estava lá também, veio pra dirigir, mas não era preciso dirigir o Ney, bastava olhar pra ele, e só. Eram 15 canções, o Ney lindo, gigante, camisola de linho, a cara preta borrada de guache branco, o piano absoluto e os olhos pequenos do Lincoln, e eu, parte daquilo - a parte menor e mais desimportante, e por isso mesmo, era eu tão encharcada de felicidade. Duas apresentações, dias 30 e 31 de julho de 2004, tínhamos um espetáculo: Entrevista com Stela do Patrocínio.
O Ney morreu nove dias depois da estréia e na véspera do meu aniversário, no ano mais agudo da minha vida. Eu não sabia que tinha tanta água pra derramar. Eu não conhecia aquele silêncio.
O Lincoln foi valente, não abandonou o Ney, o barco, a beleza toda, vingou: a Georgette assumiu Stela - só ela tem boca e envergadura para a palavra de Stela, só na garganta dela cabem estas canções, esta história, este espetáculo. Junto veio a Julia Zakia, retina, copo d'água e varanda pra dançar conosco. Fomos então vestidos pela Silvana Marcondes, mãos pequenas bordando palavras, cianinhas, botões, rendas. Eu ganhei de presente a primeira canção. Nós chamamos Núcleo do Cientista.
Depois de 9 anos, ainda me surpreendo. A palavra cortante e certeira que tirou meu sono, minha certeza, meu norte, ainda continua a me emocionar tanto. Eu, que sou afeita ao mínimo, ainda aprendo, humílima, a virtude do cantar e da canção mais desprovido de excesso e vaidade.
Do Ney eu herdei o casaquinho de tricô feito num capricho de vovó, espargido de lavanda johnsons pra disfarçar o cheiro do cigarro; herdei as quintas feiras do Ó do Borogodó; e herdei Stela.
Eu sou uma pessoa de sorte.
Lindo Juliana, Lindo. Li seu texto não como quem lê do lado de cá, mas como quem lê dentro dele. Com amor, Consuelo de Paula
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